O vizinho aqui de frente amanheceu hoje “cuns karay”. Arreganhou o volume de sua caixa de som. A sua quarentena está a “pincaros”. Antes esse senhor mantinha uma rotina: pegar seu banquinho e sentar em frente da casa, conforme o sol ia aparecendo ele ia se mudando. A tardinha, as vezes, quando eu vinha em casa, ele já estava na esquina, agora sentado na calçada. E, assim, fazia esse cerimonial todo santo dia. É aquele que sabe de tudo que acontece na rua.
Em tempos de quarentena, resolveu mudar um pouquinho sua rotina. Agora fica do lado de dentro de sua casa, mas como não pode ter aquela visão de 360 graus, resolveu tirar do baú aquela vitrola, uma caixa de som das antigas, mas poderosa ainda; e ao invés de ficar bisbilhotando a vida dos vizinhos, resolveu fazer um flasback de sua vida.
Pelo ritmo e pelas letras das músicas dá para perceber que é um senhor muito eclético. As 7hs, parece lembrando tempos amargos da ditadura militar vem com Geraldo Vandré, “Caminhando”, apareceram Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, até Chico Buarque veio dar uma “palhinha”. Senti falta de Roberto Carlos: será que o vizinho sentiu “tantas emoções” no passado que não quer lembrar?
Conforme o sol vai aparecendo com suas luzes mais fortes, o vizinho vai se assanhando. E sua linha do tempo vai se esticando cada vez mais.
Ai parece que ele lembrou de uma “caboca” que se apaixonou, mas nunca conseguiu concretizar esse amor, pega Adilson Ramos “sonhar contigo”, chega a fechar os olhos, lembrando desse tempo.
Roberto Carlos apareceu, acredito que ele tenha lembrado de uma situação de decepção muito grande com a vida, com os negócios e, principalmente, com os casos de amor e tacou-lhe o Rei “quero que vá tudo pro inferno”.
Daqui a pouco ele entra com Dolores Duran, “A noite do meu bem”, tudo indicava que essa era uma lembrança boa do vizinho. Logo em seguida mandou Nelson Gonçalves “Fica comigo essa noite”. Eita, as coisas estavam se encaixando. Parece que quando tudo caminhava bem, lá vem Altemar Dutra “Que queres tu de mim”, fiquei me perguntando: será que ouve um contratempo com a “pequena”?
Entra Gilberto Gil na parada de sucesso com “Aquele Abraço”, ai ouvi um sussurro “pena que a gente não pode dar aquele abraço agora. Naquele tempo a gente abraçava muito forte”
Nem a propósito começa a cair uma chuva, e lá vem Jorge Ben com “chove chuva”.
E logo em seguida entra Jair Rodrigues com a “Disparada” e “Arrastão”, Elis Regina. Fiquei pensando, será que ele foi vítima em tempos passados daqueles arrastões nas praças, nas praias. Eram grupos de jovens que saiam roubando quem encontrassem nas ruas. Fiquei curioso.
Dei uma olhadinha de leve, e lá estava o vizinho de mãos no queixo, cabeça baixa e a música rolando na vitrola “Se acaso você chegasse” com Elza Soares. Que lembrança bateu forte no coração do vizinho. Ai!! Deu um dó!!!
Ele deu uma reabilitada, levantou a cabeça e mandou Cauby Peixoto, “Ninguém é de Ninguém”. Ai ele pegou um copo com um líquido meio viscoso, e “tacou-lhe” pra dentro: uma caipirinha. Pensei: “agora vai”.
E quanto mais a caipirinha ia descendo nas tripas, o sangue ia inflamando, então foi variando as músicas. Entra com Reginaldo Rossi, “Garçom”, “Saiba que o meu grande amor hoje vai se casar. Mandou uma carta pra me avisar…” Lá vem as lembranças de decepção no amor. E mais um copo, e mais outro. Agora vai. Repete Reginaldo Rossi, agora com “Leviana”, “Ficava sussurrando junto ao meu ouvido. Mentiras misturadas com o seu gemido. E eu acreditava na sua palavra. Leviana! ”
A partir daí parece que a linha do tempo de meu vizinho entrou numa deprê total. Desfilaram os sertanejos, dor de cotovelos, sofrência..... senti falta do carimbó.... mas não podia fazer nenhum pedido. Era obrigado a ouvir.
Até que por volta das 15hs, o vizinho tasca a música sertaneja “Eu não te quero mais”. Um trecho da letra diz “Chega! eu preciso te falar, "Cai fora"! Eu não te quero mais”. Ai reduziu o volume. E se aquietou. #ficaemcasa#. Acho que foi dormir.
תגובות